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O Brasil é um país de cachoeiras. Muitas delas estão em terrenos privados, o que gera um conflito antigo e cada vez mais intenso: o direito de propriedade versus o direito de acesso a um bem de uso comum. A Serra do Cipó, com sua abundância de quedas d'água, é um microcosmo perfeito desse dilema, onde a teoria jurídica se choca com a prática do dia a dia.
Este artigo aprofunda o arcabouço legal que rege o tema, analisando a natureza jurídica das águas, os projetos de lei em tramitação e correlacionando essa base teórica com três casos práticos na própria Serra do Cipó.
O ponto de partida para a compreensão do tema é o status jurídico da água no ordenamento brasileiro. A legislação é inequívoca ao classificar a água não como um bem de apropriação privada, mas como um bem público ambiental e de uso comum do povo. Essa classificação é um pilar fundamental do Direito das Águas no Brasil, um ramo do Direito Público consolidado a partir da Lei Federal nº 9.433/1997, a chamada Lei das Águas.
A Lei das Águas instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), com o objetivo de assegurar o "uso múltiplo da água". Esse princípio, que abrange o consumo humano, a dessedentação de animais, o uso industrial, agrícola, hidrelétrico, e o entretenimento, serve de base para a interpretação de que o acesso para fins de lazer, recreação e turismo deve ser garantido, mesmo quando o corpo d'água está em um terreno particular. O controle sobre os corpos d’água cabe à União ou aos Estados, e não ao particular.
Para contextualizar o cenário atual, é crucial considerar a evolução histórica do direito hídrico no país. O antigo Código de Águas (Decreto nº 24.643/1934) fazia uma distinção entre águas públicas e águas privadas, permitindo que certas quedas d’água fossem consideradas de propriedade dos donos dos terrenos marginais. No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, essa distinção foi superada. A Carta Magna e as leis subsequentes reafirmaram que as águas são bens da União ou dos Estados, não existindo mais a categoria de “água de propriedade privada”. Embora a queda d'água possa estar em um terreno particular, a água em si permanece como um bem público, o que proíbe sua apropriação ou o cerceamento de seu uso.
A proteção legal se estende além da água para o ambiente circundante. O Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) complementa essa estrutura ao instituir as Áreas de Preservação Permanente (APPs). As APPs, que incluem as áreas ao longo dos cursos d'água e em topos de morros, são espaços legalmente protegidos, independentemente de estarem em propriedades públicas ou privadas. Embora o proprietário tenha o direito de uso da terra, esse direito é limitado pela função social da propriedade, que inclui o dever de conservação ambiental. A presença de uma cachoeira em uma propriedade particular não lhe confere o direito de cercar o bem público.
Apesar de a legislação ser clara e o arcabouço jurídico robusto, existe uma lacuna notável entre o princípio e a prática. O problema do acesso em áreas particulares é uma realidade social e de conflito, conforme evidenciado por disputas em locais como a Cachoeira da Capivara na Serra do Cipó. A existência de múltiplos projetos de lei em tramitação para disciplinar o acesso demonstra que a lei, por si só, não é autoaplicável ou não é clara o suficiente para resolver os conflitos no dia a dia. Há uma ausência de mecanismos de regulamentação prática para efetivar o princípio legal, levando a uma apropriação de fato por particulares.
Diante da falta de regulamentação clara, o cenário legislativo tem se movimentado com diversas propostas para disciplinar o acesso a locais de beleza cênica em propriedades privadas. Propostas como o Projeto de Lei (PL) 1562/15 e o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 74/2017 visam garantir o "livre trânsito" por propriedades privadas que levam a "sítios naturais de grande beleza cênica" abertos à visitação pública.
Um dos pontos mais polêmicos e centrais dessas propostas é a possibilidade de o proprietário cobrar pelo acesso, desde que a quantia seja "módica". A justificativa para a cobrança é cobrir os custos de "obras civis e serviços de manutenção" e, em alguns casos, assegurar um "razoável lucro" ao proprietário. A permissão de cobrança, mesmo que módica, cria uma barreira econômica que pode violar a universalidade do acesso. Esse termo, na prática, pode ser interpretado como um eufemismo para uma privatização disfarçada do acesso. A permissão de um lucro, por exemplo, afasta a cobrança de uma simples compensação de custos e a insere na esfera da exploração econômica de um recurso que, por lei, não pertence ao proprietário. A "privatização" do acesso não é formal, mas se dá pelo cerceamento do livre trânsito, e a legislação em tramitação pode, ironicamente, legitimar essa prática sob o pretexto da regulamentação.
Essa tensão entre a cobrança e o direito universal ao acesso é ilustrada pela falta de consenso legislativo. O Projeto de Lei 2/2021, por exemplo, visa alterar o Estatuto da Cidade para "impedir cobranças indevidas" em espaços públicos como cachoeiras, rios e praias, o que contrasta com as propostas que permitem a cobrança.
As proposições legislativas também impõem outras condições para o acesso, como a contratação de seguro por danos pessoais ou resgate, ou a declaração de capacidade técnica do visitante. Essas cláusulas visam proteger o proprietário contra a responsabilidade civil por acidentes, ao mesmo tempo em que transferem o ônus financeiro e de risco para o visitante.
A gestão de uma cachoeira em propriedade privada implica uma série de responsabilidades legais, tanto para o proprietário quanto para o visitante. Primeiramente, o proprietário tem o dever inafastável de proteção ambiental. A responsabilidade por danos ambientais é de natureza objetiva e propter rem, ou seja, ela está vinculada à propriedade do bem, e não à pessoa do proprietário. Desse modo, os proprietários atuais e antigos podem ser responsabilizados solidariamente. Isso inclui a obrigação de manter a mata ciliar, evitar a poluição das águas com resíduos sólidos ou líquidos e zelar pela conservação do ecossistema local.
A questão da responsabilidade por acidentes pessoais é mais complexa e crucial para o tema. Se o proprietário se abstém de cobrar (ou seja, não há uma relação de consumo), sua responsabilidade por acidentes seria baseada na culpa (negligência, imprudência ou imperícia), exigindo que a vítima prove a falha do proprietário. No entanto, se o proprietário opta por cobrar por "serviços de conservação e manutenção" , ele pode ser enquadrado como fornecedor de serviço, o que acarreta a responsabilidade objetiva pela "teoria do risco do negócio/atividade". O que começa como uma forma de regulamentação e receita pode se tornar um passivo jurídico significativo em caso de acidente grave. O ato de "comercializar o acesso" transforma o proprietário de um mero dono de terra em um gestor de serviço, alterando drasticamente o seu perfil de risco e suas obrigações legais, que passam a incluir um dever de segurança muito mais elevado.
As propostas legislativas, ao exigirem que o visitante contrate um seguro , tentam mitigar essa responsabilidade para o proprietário, mas não a eliminam totalmente, pois o dever de cuidado com a infraestrutura e a sinalização persiste.
Por sua vez, os visitantes também possuem deveres claros. Eles devem zelar pela conservação dos ecossistemas locais, respeitar os limites estabelecidos e as regras de manejo, e não exceder os horários de uso compatíveis com a prática segura das atividades
Os casos da Cachoeira Grande, Véu da Noiva e Pedrão, na Serra do Cipó, servem como estudos de caso reais dos dilemas legais e sociais discutidos anteriormente.
O caso da Cachoeira Grande reflete a tentativa de aplicar a regulamentação prevista em projetos de lei como o PL 1562/15, que legaliza a cobrança de uma taxa módica . Com uma taxa de R$ 60,00 e a presença de infraestrutura como banheiros e salva-vidas, o local adota um modelo de exploração econômica com a preocupação de fornecer segurança e organização.
Responsabilidade: Ao cobrar e oferecer serviços, o proprietário assume a responsabilidade objetiva de um fornecedor, conforme o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Isso significa que ele é responsável por acidentes, independentemente de culpa, bastando provar o dano e o nexo causal.
Conflito com Moradores: A relação com os moradores, que antes tinham acesso livre, foi rompida devido ao aumento de visitantes e à dificuldade de distinguir entre "nativos" e "turistas". Isso demonstra que o problema não é apenas a cobrança, mas a gestão do acesso. A lei ainda carece de um mecanismo eficaz para conciliar o direito de uso da população local com a exploração turística.
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A Cachoeira Véu da Noiva, administrada por uma associação cristã (ACM), opera como um empreendimento turístico completo, com camping, chalés e restaurante. A exploração econômica é total, superando a ideia de uma simples "taxa módica" e se enquadrando em uma clara relação de consumo.
Responsabilidade: A ACM, como fornecedora de serviços turísticos, tem a responsabilidade objetiva por acidentes, como o risco de queda de rocha que levou à sua interdição em 2023. Essa responsabilidade é inafastável, e o dever de zelar pela segurança e infraestrutura é elevado, não podendo ser negligenciado.
Ação Social: A contrapartida social, oferecendo aulas e apoio psicológico a crianças, é uma iniciativa louvável, mas que não resolve o conflito central do acesso ao bem público. O direito de ir e vir a uma cachoeira não deve ser condicionado por uma iniciativa privada, mesmo que bem intencionada.
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O Cânion do Rio Cipó, conhecido como Cachoeira do Pedrão, oferece livre acesso e não cobra entrada. Embora isso se alinhe com o princípio do bem de uso comum do povo, a ausência de gestão e infraestrutura gera problemas ambientais graves, como degradação, lixo e outros crimes ambientais.
Responsabilidade: Nesse caso, o proprietário do terreno não tem a responsabilidade de um fornecedor (por não haver cobrança), mas sua responsabilidade por danos ambientais é inafastável. A responsabilidade por danos ambientais é objetiva e propter rem, ou seja, ligada à propriedade, e ele pode ser responsabilizado por degradações que ocorrem em suas terras, mesmo que causadas por terceiros .
O Dilema: Este caso mostra o outro extremo do problema. A falta de qualquer regulamentação ou gestão leva à degradação e a um uso insustentável do recurso natural. A situação reforça a necessidade de um modelo de acesso que equilibre a liberdade de uso com a responsabilidade de conservação, seja por meio de um plano de manejo público, ou por meio de uma gestão privada organizada e fiscalizada.
Os casos da Serra do Cipó demonstram que o acesso às cachoeiras em áreas privadas é um tema multifacetado que a lei, por si só, não resolve completamente. A questão exige um equilíbrio entre a proteção de um bem público (a água) e o respeito à propriedade privada.
A Cobrança como Solução Incompleta: A cobrança, quando acompanhada de uma boa gestão e infraestrutura, pode ser uma forma de garantir a sustentabilidade do local e a segurança dos visitantes, mas levanta questionamentos sobre a privatização do acesso.
A ausência de regulamentação como Risco: O livre acesso sem gestão, como visto na Cachoeira do Pedrão, gera riscos ambientais e de segurança, tornando o local insustentável a longo prazo.
O caminho a seguir é a regulamentação prática e eficaz. O Poder Público precisa avançar com a legislação que, de fato, discipline o acesso, garantindo a sua universalidade sem descurar da conservação ambiental e da segurança. Isso pode envolver parcerias com proprietários, desapropriações em casos estratégicos ou a criação de planos de manejo específicos para cada cachoeira, envolvendo a sociedade e os órgãos ambientais. O que os casos da Serra do Cipó mostram é que a ausência de uma solução prática gera conflitos, degradação e, em última análise, coloca em risco a beleza natural que se busca preservar.
Referências citadas